Governo da Paraíba pagou R$ 23,5 milhões à família Lundgren pela desapropriação de casas de Rio Tinto, cidade do Litoral Norte da Paraíba.
No último dia 24 de março, o governo da Paraíba assinou um documento de desapropriação de cerca de 700 moradias em Rio Tinto, cidade localizada no Litoral Norte do estado. Essas propriedades pertenciam à família Lundgren, detentora da Companhia de Tecidos Rio Tinto (CTRT), que há mais de século é proprietária da maioria dos imóveis do município. A ação de desapropriação custou aos cofres paraibanos R$ 23,5 milhões.
A empresa era uma das fábricas do grupo Lundgren, também fundador das Casas Pernambucanas, importante rede varejista do Brasil.
Bisneto do fundador da CTRT, Frederico Lundgren, o advogado Herman Ludgren explicou ao g1 que, dada a extensão da família, a rede Pernambucanas passou para as mãos de herdeiros que agora vivem na região Sul do país, não tendo mais relação econômica com a CTRT.
Com 24.154 habitantes, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2017, a cidade tem 3.913 domicílios particulares ocupados na área urbana. Desses, pelo menos 3.000 pertenciam à Companhia no início de 2022, antes das desapropriação estatal, de acordo com o advogado da empresa, Virginius Lianza.
Por isso, Rio Tinto é apelidada de “cidade privada” por seus moradores, uma vez que praticamente todos pagavam aluguel até a desapropriação. Segundo Lianza, a taxa de paga pelas famílias é de “baixo valor”, chegando a custar R$ 80.
De acordo com o documento de desapropriação, os critérios para distribuição das casas são: 1) residir há, pelo menos, 5 anos em Rio Tinto; 2) não possuir imóvel próprio e se encontrar em moradia de aluguel na data do decreto; 3) receber até três salários mínimos de renda; 4) por fim, estar assentada em áreas exclusivamente residenciais.
Ainda envolvendo as mais de 3 mil residências, tramita na Justiça, segundo o Ministério Público Federal (MPF), um processo que envolve os Lundgren e os indígenas Potiguara da região, que reivindicam a posse de 2 mil moradias, localizadas na “Vila Regina”. Enquanto o processo tramita, a CTRT não recebe aluguéis desses imóveis, fazendo com que apenas aproximadamente 300 estejam rentáveis para a companhia atualmente.
Mesmo com a desapropriação, os Ludgreen ainda são proprietários da maioria dos imóveis da cidade, já que as 2 mil propriedades reivindicadas pelos indígenas ainda estão sob posse da companhia. No entanto, o advogado Virginius Lianza afirma que esse desequilíbrio chegou à normalidade após a venda ao estado da Paraíba, “pois existem outros tantos loteamentos e condomínios construídos nos últimos 3 anos”, diz Lianza.
Com a fábrica desativada definitivamente nos anos 1990, atualmente a empresa sobrevive justamente através do setor imobiliário.
Os Lundgren costumam ser referenciados como fundadores de Rio Tinto, pois a fundação da cidade se deu a partir da instalação da Companhia de Tecidos, entre 1917 a 1918. Mas antes de chegarem lá, as terras eram ocupadas por indígenas Potiguara do aldeamento de Monte-Mór, atualmente ‘Vila Regina’, cujos moradores disputam na Justiça a posse dos imóveis. Na época, as terras foram vendidas pelo coronel Alberto César de Albuquerque por 23 contos de réis.
Conforme explica a antropóloga Marianna de Queiroz, autora do estudo “A Família Lundgren e a fundação da cidade de Rio Tinto”, os suecos tiveram muitos privilégios, como a boa localização das terras, que possuíam portos naturais. Além disso, o Estado beneficiou a família com uma isenção fiscal de 25 anos.
A Companhia adquiriu cerca de 660 km² de terras e, em 1917, iniciou seus trabalhos de drenagem e canalização das águas no local de instalações da fábrica e a criação de uma olaria para a produção dos chamados ‘tijolos aparentes’, o que explica o fato de Rio Tinto possuir um “padrão estético”, no qual a maioria das edificações da cidade são feitas de “tijolinhos vermelhos
As casas foram construídas para que os operários tivessem onde ficar na cidade ao virem trabalhar na fábrica. Os imóveis eram “emprestados” aos trabalhadores, que pagavam uma quantia para residir no local. Hospitais, farmácias e diversos outros serviços também foram construídos. Dessa forma, o dinheiro recebido pelos trabalhadores circulava de volta à Companhia. Com a desativação da fábrica, o valor do aluguel continuou sendo pago pelos moradores que permaneceram no local.
“Famílias inteiras foram aliciadas pelos agentes da companhia, iludidas com promessas de melhorias da qualidade de vida, quando chegavam à Rio Tinto eram amontoadas em galpões até que fossem construídas as casas, que variavam de acordo com o número de trabalhadores da fábrica e com o cargo exercido”, diz a pesquisa de Marianna Queiroz.
“Havia diferentes tipos de casa para as variadas funções na fábrica. As casas e chalés localizados nas principais ruas da cidade eram maiores e ocupados por diretores e chefes de setores. As casas dos trabalhadores que se localizavam no entorno eram menores”.
Considerada, na época, uma das maiores da América Latina, a fábrica chegou a possuir 18 mil funcionários. Os Lundgren “optaram pela procura de terras distantes de cidades movimentadas e, consequentemente longe da atuação de movimentos sindicais, ameaçadores de seu domínio e controle sobre a mão-de-obra”, diz a antropóloga em seu estudo.
A partir desse momento, os Lundgren passam a atrair mão de obra, empregando muitos indígenas da etnia Potiguara na implantação de roçados e na abertura e conservação de estradas. “Os indígenas que ficaram vivendo sob o domínio dos Lundgren relatam uma época de intenso trabalho na fábrica, nas lavouras e no corte de madeira”.
“Muitos Potiguara relatam que quando uma família se recusava a entregar suas terras para os Lundgren tinham suas casas atacadas e destruídas pelos ‘capangas’ do Coronel Frederico durante a noite impossibilitando a fuga. Muitos indígenas tinham medo de se aproximar de suas famílias para não serem pegos. Devido a esse fato muitos optaram pela dispersão ao migrarem para outras aldeias ou cidades do entorno”, aponta o estudo.
A fábrica começou a entrar em declínio no fim da década de 1960 Entre as causas, a antropóloga destaca que o mercado foi se tornando mais competitivo e as transformações tecnológicas ocorridas nas indústrias da região Sudeste do país provocaram uma crise na fábrica. Outros fatores foram apontados, como os problemas jurídicos envolvendo questões de herança. Todo o processo de decadência e desentendimento familiares se estendeu até 1990, quando a Companhia de Tecidos Rio Tinto fechou definitivamente suas portas
Hoje a fábrica encontra-se desativada e nas antigas instalações funciona a Policlínica Rio Tinto, uma pequena fábrica de toalhas e um campus da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Os trabalhadores que não tiveram condições de sair da cidade, muitos deles indígenas que moravam na região quando foram ‘empregados’, continuaram a pagar aluguel, e assim diversas outras gerações durante mais de um século, até agora.
O Movimento Liberta Rio Tinto foi fundamental para que a ação de desapropriação acontecesse. A organização surgiu como uma forma de lutar contra ações de despejo movidas pela Companhia de Tecidos de Rio Tinto. Nildo Oiteiro, liderança comunitária, explica que tudo começou quando famílias, residentes na comunidade tradicional quilombola ‘Oiteiro’, receberam uma ordem de despejo das casas onde moram há várias gerações.
A partir disso, criou-se o movimento “Oiteiro Resiste”, que lutou na Justiça pela posse das casas e foi vitorioso em 2017. “Quando a gente ganhou a liminar na Justiça, a gente criou o Movimento Liberta Rio Tinto, a partir das reuniões em Oiteiro. Justamente levando essa ideia de força de que se oito famílias conseguiram vencer, a gente entendia que a cidade também tinha que se movimentar e lutar pelos direitos dela”, diz a liderança comunitária.
“Boa parte da cidade entende que essas casas são suas, pois fizeram manutenções ao longo dos anos. Quando a fábrica faliu, eles não receberam direitos trabalhistas. As pessoas querem liberdade, mas não podem fazer nada com as casas porque ainda são legalmente da Companhia”, diz a liderança, que enxerga a desapropriação como motivo de comemoração.